Um dia honesto de trabalho
- Vitor Ximenez

- 9 de mar.
- 4 min de leitura
Atualizado: 30 de jun.
O sujeito era acostumado ao processo. A perfuração mecânica doía um pouco, mas era esperada. Uma vez concluída, o sangue revelou no console ao lado sua identidade: Marcos Pence, 27.
“Tudo certo, Pode seguir”, o pequeno e familiar homem careca instruiu. Marcos não demorou a acatar tal instrução.
Os corredores adiante eram longos e cinzentos, com ocasionais interrupções de passagens de ar abertas ao céu e áreas maiores para concentração de pessoas nos dias de maior movimento. Marcos os navegava com propósito, seguindo o que as ordens recebidas pela manhã instruíam. Seguiu reto por oito blocos de corredores, então virou a direita, seguindo por mais três e por fim virando a esquerda. Ali, uma pequena porta levava a uma escada longa. Ele desceu até deparar-se com o fim de uma fila claustrofóbica cujo fim estava muito além do alcance da própria visão.
A fila avançava muito lentamente, um processo de muitas horas. Nas ocasionais sonecas em pé, Marcos era despertado por alguém que lhe avisava que era a hora de se mover. Quando aqueles ao seu redor cochilavam, era sua vez de retribuir a gentileza. Aquele processo compunha a maioria de seu tempo de expediente, fosse naquela estação de análise ou em uma das muitas outras. Em algum momento disso no entanto, a fila chegava ao fim, ditando que era sua vez de adentrar à sala de questionário.
O cômodo era pequeno, espaço o suficiente para uma pessoa confortavelmente posicionada ou talvez três se esforçando para caber. Uma placa metálica prateada dividida por uma linha luminosa vermelha ficava bem a frente da entrada, e era dela que vinham as peguntas.
“Pronto para as perguntas da linha de base?”, perguntou a estrutura.
“Sim”, ele respondeu.
“Informe nome e idade como ditado em registro”
“Marcos Pence, vinte e sete.”
“Área de Residência?”
“ J9, de Atlan”
“Qual a sua comida favorita? Responda como registrado em seu fichamento mais recente”
Marcos teve que pensar um pouco, ele não era o tipo de pessoa que costumava definir favoritos, mas era parte obrigatória do registro para qualquer serviço de processamento humano.
“Enrolado Proteico?”
“Linha da base estabelecida. Iniciando processamento informacional do dia”, a máquina anunciou. O som repetitivo de um disco rígido tomou conta do silêncio por alguns instantes.
“Como você definiria ‘Cultura’?”
Após um tempo, Marcos seguiu com a resposta:
“Um conjunto de práticas, ideias, tradições e outras coisas de um grupo de pessoas, geralmente pessoas que compartilham algum aspecto da vida entre si, seja uma comunidade ou o local onde vivem. Também pode significar o ato de cultivar algo, plantas, por exemplo. Suponho que de certa forma o primeiro significado possa ser só uma aplicação do segundo para a perspectiva humana, nossa ‘cultura’ ser simplesmente a forma que fomos cultivados por nossos arredores”, ele orgulhou-se da resposta sagaz e completa , mas não teve muito tempo para desfrutar do propósito orgulho.
“O que leva um humano a trair a confiança de outro?”
Era parte do protocolo não tecer comentários alheios à resposta direta da questão. Marcos teve de se impedir de apontar a dificuldade da questão conforme pensava.
“Algumas vezes a busca de benefício próprio, uma decisão consciente de que algo vale mais do que a relação estabelecida. Mas existem ocasiões apenas a falta de competência ou informação, nem toda quebra de confiança é intencional. O tipo de situação que diz algo tanto sobre o traidor quanto sobre o traído”
“Respostas registradas, o conglomerado agradece à contribuição”, a voz de dentro da máquina anunciou. Duas perguntas era o típico esperado de um expediente, mas nem sempre tratavam-se de perguntas tão profundas. Eram, no entanto, sempre perguntas de natureza inerentemente humana.
Uma porta lateral se abriu, permitindo que Marcos partisse para uma das zonas de concentração. Nela, uma máquina de alimentos convenientemente posicionada estava disponível para saciar as necessidades criadas pelo longo expediente. Um pequeno console nesta permitia o reconhecimento facial.
“Marcos Pence, duas unidades disponíveis”, a máquina declarou quando ele ficou diante dela. Um a lista de botões mostrava as opções disponíveis ao lado.
Ele selecionou dois itens: substrato orgânico proteico enrijecido e refresco tropical. Uma boa combinação de salgado e cítrico para uma refeição, além de conveniente para consumir em movimento.
Marcos caminhou por uma longa reta até alcançar uma das portas de saída da estação, onde mais uma vez seu sangue foi coletado, desta vez por uma mulher silenciosa e apática. A identificação o permitiu sair para uma rua isolada, alguns andares de ruas abaixo de onde ele havia adentrado a enorme construção.
Aquela era uma área silenciosa e isolada da zona de contenção onde já vivia há dez anos, um canto marcado por uma ausência de qualquer coisa que não as idas e vindas de um povo enclausurado. as demais ruas no percurso até sua habitação privada eram tão vazias de informação quanto aquela, porém algumas possuíam mais função. Postos de serviços e estabelecimentos recreativos alimentavam as horas do dia a dia que não eram dedicadas ao coercivo e contraditório avanço humano.
Uma habitação individual como a de Marcos era sempre fruto de muita dedicação, pontualidade e sobretudo cuidado da parte do mesmo. Não oferecia luxos ou apetrechos particularmente diferentes das habitações coletivas, mas era um conforto especial ter seu próprio lugar para dormir e fazer as necessidades. Naquele dia, ela foi também a fagulha inicial de um sorriso para ele no momento em que se deitou confortavelmente em sua cama após o expediente. “Nossa vida pelas próximas, nossa mente para o futuro”, era o que diziam os consoles e propagandas, “uma vida simples” era o que ele levava para si.








