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Os Sabujos, por Eustáquio

  • Foto do escritor: G. Pawlick
    G. Pawlick
  • 30 de set.
  • 4 min de leitura

Ainda sinto o gosto avinagrado do destilado de batata da noite anterior. Justino havia trago um cantil de sua produção pessoal, o qual bebemos a fim de espantar o frio, enquanto conversamos em volta da fogueira. A noite estava limpa e estranhamente calma, exceto pelos sabujos-de-nariz-de-estrela que, cavocando a terra com os focinhos colados ao solo, estavam sempre agitados com o mundo à sua volta. Há uns anos atrás eu ainda estava em uma comunidade das Terras Vazias, onde havia nascido, e não conhecia essas criaturas. Mas agora convivendo com elas, eu consigo, cada vez mais, entender sua inquietude.


Depois que eu vim a me juntar a Nova Parmena, tive acesso e conhecimento, não só a livros e a cultura do mundo pré-colapso, mas a uma variedade de criaturas com as quais aprendi a lidar e compreender. No entanto, entre todas, cultivei algo especial com esses carinhas acinzentados de cabeça esquisita. 


Todo o universo dos sabujos-nariz-de-estrela é concebido através de seu olfato super sensível. Mesmo quase cegos, eles conseguem sentir tudo ao entorno, podendo perceber a presença de outros seres a quilômetros de distância. Uma simples lebre em sua toca ou camundongo revirando a folhagem a umas dezenas de metros são o suficiente para desassossegar esses animais. O mundo para eles é caótico, frenético - o estímulo é incessante - e eu me compadeço de quão incômodo deve ser viver nele. 


Ando pelas ruínas de apartamentos tomados por mofo e plantas, enquanto penso nos sabujos. Um mundo de silêncio e esquecimento. O oposto do universo escuro dos sabujos. O oposto… da minha mente barulhenta cheia de lembranças. 


Me juntei aos parmenos há anos atrás, por ter conhecido de perto a voracidade das máquinas que, sem estômago, são sempre insaciáveis. Nasci sem saber que um velho mundo existia, para mim a vida sempre fora simples. E as estruturas colossais de concreto que se erguiam longe aos céus, me eram tão naturais quanto as árvores ou as rochas que, igualmente imóveis, rodeavam a vila onde nasci. 


Nunca imaginara que pessoas poderiam morar em blocos umas sobre as outras. E conceber que toda essa calmaria das ruínas um dia fora povoada, que as pessoas se cruzavam com frequência ao som de bipes e motores que nem posso imaginar, que haviam caminhos para carros, luzes para a noite e máquinas para serviços; tudo isso ainda me parece parte de uma fantasia contada para crianças. Daquelas que criamos por não saber responder suas perguntas inconvenientes.


Cresci em uma comunidade agrícola, sem nunca saber que um colapso existiu. Me fiz em meio a simplicidade das plantas, do burburinho incessante dos insetos, da monocromia pacata do campo e, quando o ranger áspero das máquinas em marcha cortaram o equilíbrio dos pássaros, eu não pude entender. Não era mais uma criança quando os autômatos da Sovereign pisotearam nossas casas e plantações, mas também não era adulto o suficiente para entender que precisava agir. Lutar contra aqueles colossos de metal seria só uma maneira imbecil de suicídio. Porém, movido pelo medo e imaturidade, também nada fiz além de me esconder e deixar que todos aqueles que eu conheci fossem capturados para os Antros.É curioso como todas essas memórias retornam agora, em frente a uma foto manchada e desbotada - irreconhecível - de pessoas que viveram nesse apartamento a uma centena de anos atrás, em mundo o qual me é difícil de imaginar. Um mundo muito mais próximo daqueles dos sabujos-nariz-de-estrela do que do meu. 


Dou mais alguns passos em direção a um novo cômodo e o gosto de ferro se sobrepõe ao azedume do destilado de batata. Encaro as paredes mofadas daquela realidade estranha, de um passado alheio que as plantas reivindicaram conforme as décadas. Sento-me em uma poltrona que parte já é musgo e deixo os membros tombarem enquanto a mente me leva. 


Ouço vívido o som dos sabujos, um iodelei, feito sirene, que corta de maneira agonizante o silêncio. Mas não há mais nenhum sabujo comigo. O som também não vem do lado de fora das paredes, ele se reproduz internamente, na memória. A noite estava limpa e estranhamente calma, exceto pelos sabujos-de-nariz-de-estrela que, cavocando a terra com os focinhos colados ao solo, sentiam o cheiro de metal e sangue trago pelos espreitadores do conglomerado. 


Nós éramos em cinco, mais montarias e animais de apoio. Bebíamos  e conversamos enquanto Justino preparava a comida e encontrávamos conforto da gélida brisa noturna ficando em volta da fogueira. Um dos nossos, Cornélius, me disse para ir acalmar os sabujos que estavam acorrentados em um poste a uns metros de nós. E eu, simplesmente, não vi acontecer. 


Quando me dei conta os sabujos ladravam em dissonância enquanto um espreitador, ao lado da fogueira, rasgava meus companheiros. Fui tomado pelo medo como em meu passado. Só obtive clareza para soltar os sabujos, em um último gesto de misericórdia, quando não há mais nada que possa ser feito, e então corri para dentro das ruínas do edifício mais próximo. 


Com sua agilidade, o espreitador me alcançou fácil. Me enfiei entre uma passagem nos escombros, desafivelando peças da armadura para poder atravessar com mais facilidade. Porém, no trancar de uma fivela, parcialmente protegido pelos escombros, o espreitador me perfurou na lateral do corpo, na região dos rins. Consegui seguir entre as grandes peças de concreto, adentrando a construção, enquanto o espreitador ainda tentava abrir espaço entre os blocos. Subi as escadas rumo aos apartamentos e enquanto pensava sobre os destroços de um passad____


últimas páginas escritas do diário de Eustáquio encontradas abertas sobre seu cadáver

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