O Zelador das cinzas
- Flávo Campos

- há 6 dias
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Atualizado: há 2 dias
As ruínas da antiga cidade se estendiam como ossos metálicos de um animal que esqueceu de morrer.
Entre colunas partidas e sombras longas, caminhava Tahr, um Antevaz separado de sua caravana.
O vento trazia o cheiro de ferro e chuva e o ruído distante e compassado de algo se arrastando sobre o concreto.
Ele seguiu o som.
Entre os destroços de uma avenida tomada pela areia, viu uma figura curvada, metálica, empurrando um cabo torto de uma vassoura quebrada.
O robô doméstico se movia com lentidão ritualística, varrendo o pó de uma calçada que já não levava a lugar algum.
“Limpar... limpar... preservar...,” murmurava com uma voz chiada como estática.
Tahr observou, confuso.
O gesto era tão inútil quanto hipnótico, como se a própria máquina negasse o colapso ao seu redor.
Ele se aproximou, apoiando sua lança no chão.
“O que faz, sucata? —O que espera limpar neste mundo que já apodreceu?”
O automato interrompeu o movimento repetitivo. Virando-se quando as primeiras gotas de chuva caíram e escorriam por sua carcaça opaca, misturando-se à ferrugem de sua face como se chorasse.
Quando respondeu, sua voz programada era calma, quase gentil:

ilustração G. Pawlick
“Protocolo padrão de limpeza diária. Seguindo as diretrizes estabelecidas em minha última atualização — Fez uma pausa como se suas sinapses artificiais tivessem um lampejo de consciência. E completou — A tarefa deve ser cumprida. Se eu não executar, quem cuidará deste lugar?
Tahr olhou ao redor — o asfalto rachado, os esqueletos de prédios, os rostos apagados nos painéis quebrados.Nada ali merecia cuidado.
“Máquina estúpida. Não há ninguém aqui, nem mesmo para ver, — disse o Antevaz. —Ninguém para agradecer, nem para viver aqui. Só o silêncio.”
O robô hesitou processando a informação, enquanto seus sensores piscavam desritmados em tons azuis.
“Os humanos... eles sempre deixavam rastros. — Mesmo depois que se foram, a sujeira deles continua. A cidade tenta dormir, mas o pó deles ainda cai.”
Tahr franziu o cenho.
“Os humanos... sujam?”
“Tudo o que tocam, — respondeu a máquina. — cabelos, gordura, fluídos, sangue, fogo, palavras. — fez uma pausa abrupta, como quem poderia continuar a listar mas entendeu que esse não era o objetivo —
“Quando eles se forem por completo, tudo ficará limpo. E então será fácil manter assim.”
A frase caiu pesada em Tahr. O homem que odiava máquinas sentiu um arrepio desconfortável.
Com ele uma lufada de vento forte soprou entre eles, levantando um redemoinho de cinzas que passou dançando como um espírito velho.
“Então, para ti, —disse o Antevaz, — o mundo só está limpo quando não restar ninguém?”
“Não é uma questão de querer, — respondeu a máquina. — É uma questão de função. Minha programação foi feita para manter tudo em ordem. A ausência de humanos é apenas... a perfeição da ordem.”
O silêncio se fez pesado ao ponto de o vento para de soprar por um instante.
Tahr encarou a superfície metálica onde deveria ser o rosto do autômato, e pela primeira vez viu nele não um amontoado de fios e circuitos, mas um espelho —
um reflexo do próprio fanatismo que seu povo tentava purgar. Ambos varriam ruínas, tentando restaurar um ideal de mundo que já não existia.
“Talvez tenhas razão, — murmurou Tahr. — Talvez o mundo precise mesmo ser limpo.”
O robô instantaneamente voltou a varrer, como se aquela conversa nunca houvesse existido. Mas Tahr, de alguma forma indescritível, podia enxergar que aquela máquina estava satisfeita com a aparente compreensão. Ele deu mais uns passos em direção ao autômato. A chuva engrossava, tamborilando no metal enferrujado como um cortejo fúnebre.
“Máquina, — chamou o Antevaz — Você limparia também a mim como parte dessa sujeira, se eu caísse aqui?”
O robô virou a cabeça, os olhos piscando num tom cálido.
“Afirmativo. Eu limparia. Todos nós sujamos.”
Por um instante, Tahr quase sorriu.
Depois, sem hesitar, fincou a lança no peito da máquina. Primeiro um estalo metálico, um brilho breve. Tahr torceu a lâmina arrebentando os cabos e destruindo os circuitos por dentro em uma sequência e estalos rápidos e contínuos, para logo em seguida puxar com violência a lança de volta para si.
o Zelador tombou, ainda segurando a vassoura.
Do orifício aberto escorreu um óleo translúcido, que logo se misturou à lama e ao pó.
O corpo metálico em espasmos ainda murmurava com palavras quebradas, e em sussurro repetia:
“Lim… Par-ar... tudo... limpo... Limpar. Tudo...”
Tahr ficou em silêncio. Não havia raiva, nem triunfo. Apenas o som da chuva e o eco distante de uma vassoura imaginária.
Antes de partir, olhou para o corpo imóvel da máquina e disse:
“O mundo está mais limpo agora, Zelador.”
Tahr seguiu desaparecendo entre os prédios,enquanto o vento agora sutil voltava a espalhar a poeira, como se, mesmo morto, o robô ainda tentasse cumprir seu dever.








